Em meio a uma estiagem sem precedentes, a maior bacia hidrográfica do mundo, a Amazônica, minguou. Rios caudalosos cercados por floresta se reduzem agora a fiapos d'água, evidenciando bancos de areia e barrancos. A perspectiva é que, nos próximos dias, alguns de seus afluentes atinjam cotas mínimas recordes - o Rio Negro bateu a sua hoje (16).
Principal meio de transporte, a navegação está comprometida. Moradores de áreas mais isoladas já sofrem com o desabastecimento de comida, itens de higiene e remédios, além da falta de energia. Em algumas comunidades, ribeirinhos cavam o chão rachado em busca de água. Imagens de botos e peixes mortos pela seca histórica rodam o mundo.
No Amazonas, 51 das 62 cidades do estado decretaram emergência. Mais de 392 mil pessoas foram afetadas até o momento, e 800 comunidades em unidades de conservação estão completamente inacessíveis por terra e rios. Helicópteros das Forças Armadas levam insumos básicos a esses vilarejos. Para não prejudicar o ano letivo, o governo estadual adotou a mesma estratégia da pandemia do coronavírus, e crianças isoladas estão tendo aulas em casa, via satélite.
A seca agravou outros dois problemas: as queimadas, que colocaram na última semana a capital do Amazonas entre as cidades com pior qualidade de ar no mundo, de acordo com monitoramento da plataforma World Air Quality Index. E o desbarrancamento, quando o leito do rio seca e a margem desmorona. Entre outros acidentes, o recém-inaugurado Porto de Itacoatiara desabou.
— Estamos no momento mais difícil. É inédito na história fechar outubro com uma seca como esta. Em 2010, teve uma grande, mas não por um período tão prolongado. Os impactos ambientais, sociais e econômicos são enormes. Estamos nos preparando para o pior — afirmou Eduardo Costa Taveira, secretário do Meio Ambiente do Amazonas.
No Lago do Puraquequara, na zona rural de Manaus, uma comunidade com cerca de 20 famílias que vivem em flutuantes está apinhada no único ponto em que sobrou um pouco de lama. Com a falta de chuvas, os pescadores e turistas desapareceram, assim como as fontes de renda. Onde antes trafegavam barcos com capacidade para 500 passageiros agora só tem um lamaçal. No local mais fundo do lago, garças conseguem alcançar o chão e ainda ficam com mais da metade dos corpos para fora.
O comerciante Isaque Cícero Rodrigues, de 56 anos, mora na comunidade há 23 e nunca viu nada parecido. Vendedor de gelo, em condições normais costuma lucrar R$ 100 por dia. Hoje não consegue nem R$ 10. Ele, a mulher e a filha de 12 anos já racionam mantimentos. Um dia desses, um cliente apareceu e, diante da secura, logo se despediu: "meu amigo, até a próxima enchente", disse.
— Enquanto Jesus não mandar água, estamos parados. Não tem mais aquelas regalias. Carne mesmo não tem como comprar. Estamos dependendo da ajuda de parentes e da igreja — afirmou Rodrigues.
Agora sem acesso à água encanada, a comunidade improvisou e começou a cavar o solo rachado em busca de nascentes. O aposentado Raimundo Silva do Carmo, de 67 anos, pagou R$ 250 para um conhecido abrir seu poço, ou cacimba, na linguagem local. Ali lava roupa, louça, toma banho e retira a água para beber.
— A gente estava usando uma água que vinha de uns bueiros lá de cima. Fiquei com uma coceira medonha, uma alergia forte. Só melhorou depois que comecei a tomar banho na cacimba — comemorou Carmo.
Quem não tem o próprio poço pega emprestada a água dos vizinhos, que instalaram bomba e mangueira para levá-la até os flutuantes. É o caso de Otenicio Ricardo Lima, de 77 anos, dono de uma marina de barcos no Lago do Puraquequara. Seu negócio também está parado.
— Tá difícil, né? O pessoal não vem nem pagar nem pegar as lanchas. Não chega produto, nem banana, nem melancia, nem couve, nem alface, nem maxixe, nem nada — lamentou Lima.
Efeito El Niño
A estiagem na Amazônia é uma combinação de dois fenômenos: o El Niño, que provoca seca nas regiões Norte e Nordeste e excesso de chuvas no Sul e Sudeste; e a elevação da temperatura do Oceano Atlântico, reflexo das mudanças climáticas.
Pedro Côrtes, professor do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo, explica que, com o aquecimento do planeta, uma quantidade maior de energia fica disponível para fomentar os eventos climáticos.
— É como uma panela no fogão. Com fogo baixo, demora para ferver. Se aumentar a intensidade da chama, ferve mais rapidamente — comparou Côrtes. — Há uma perspectiva de que esta seca seja histórica. Principalmente na parte Oeste da Amazônia, mais afastada do Oceano Atlântico e que recebe menos umidade.
O Rio Madeira, por exemplo, chegou a sua cota mínima da história no último dia 11, segundo o Serviço Geológico do Brasil. A baixa vazão provocou a interrupção temporária de geração de energia da usina Santo Antônio, em Rondônia, a quarta maior hidrelétrica do país. É a primeira vez que a usina é desligada por falta de chuvas.
Numa madrugada da última semana, um barco de passageiros, o Aliança III, atolou num bando de areia no Rio Negro, perto da Marina do Dani, em Manaus, e continua lá. Não havia ninguém a bordo, além da tripulação. Desde o último dia 21, uma balsa da empresa Lana'S Bella, de transporte fluvial, está encalhada no Rio Negro num distrito da cidade de Iranduba, no Amazonas.
Carregada de engradados de bebidas e garrafões de água vazios, além de dois caminhões de combustível e gás, um carro, uma retroescavadeira e uma empilhadeira, a balsa saiu de Borba, no interior, para reabastecer em Manaus. Júnior César Corrêa da Silva, de 39 anos, comandante da balsa, conta que antes da viagem viu algumas fotos do rio e julgou que a navegação seria possível. Ao chegar, dois dias depois, pegou um fumaceiro das queimadas, ficou sem visibilidade e encalhou. Para proteger a carga e os tripulantes dos piratas, a empresa contratou segurança armada.
— Hoje o prejuízo financeiro está em torno de R$ 15 mil por dia, com salário dos funcionários aqui, alimentação, segurança. Sem contar os danos da embarcação, que terá uma parte refeita para conseguir flutuar de novo — afirmou Silva.
Na última sexta-feira (13), outra balsa da empresa chegou à região para fazer o transbordo da carga e levar os materiais até Borba, que já sofre com a falta de gás, combustível, mantimentos e água mineral. Cerca de 15 funcionários ajudam na missão, da construção de uma passarela de madeira para ligar uma balsa a outra à retirada dos veículos e materiais. Se der certo, será trabalho para alguns dias.
Fonte: O GLOBO
da redação FM Alô Rondônia
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